“O
mais importante é a segurança!” Alguém
discorda?
Uma coisa é certa. Todo acidente aéreo nos impressiona
e entristece. A perda de tantas vidas, de uma só vez, é
sempre um fato duro, marcante.
Tenho trabalhado na área de prevenção e investigação
de acidentes por quase duas décadas. Durante todo esse
tempo testemunhei muitas coisas. Aprendi muitas coisas. Segurança
de vôo é assim. É necessário um trabalho
contínuo. Uma estrutura delicada, construída dia-a-dia.
No contato com a tripulação, funcionários,
passageiros, operadores, mecânicos, engenheiros, administração,
etc. Um equilíbrio muito fino. Algo de confiança
e respeito. O sistema de segurança de vôo é
um sistema baseado em confiança mútua. Uma organização
que precisa de todos. Um sistema delicado. A confiança,
tão essencial, pode desmoronar a qualquer momento se algum
dos participantes, aqueles que têm “a mão na
massa”, sente-se ameaçado e deixa de contribuir com
suas informações. É essencial a compreensão
e a disposição de cada um em relatar para o sistema
de segurança, e para todos, algumas vezes, a observação
de algum fato isolado ocorrido com ele ou com ela. Algo que não
resultou em um acidente ou incidente, mas que poderia, potencialmente,
contribuir para um deles. Essa contribuição individual
e espontânea é extremamente importante para evitarmos
acidentes. É essencial para a segurança de todos.
A cada ocorrência, seja um simples incidente relatado ou
um acidente consumado, aprendemos alguma coisa. O que é
frustrante é que sempre existe a possibilidade de um novo
evento fatal. Os riscos nunca serão nulos. Contudo, a cada
nova descoberta, nos aproximamos assintoticamente desse ideal.
Inicialmente observe que todo acidente ocorre por uma sequência
não provável de eventos. Imagine isso como o alinhamento
simultâneo de furos em várias folhas de papel diferentes.
Algumas vezes, um evento induz a outro. Outras vezes não.
Pura coincidência infeliz.
Assim, fica claro que um acidente, resultado final desse alinhamento
de fatos, poderia ser evitado se pudéssemos eliminar, ou
mesmo adiar por alguns segundos em alguns casos, um desses fatores
coincidentes.
A prevenção preocupa-se com esses alinhamentos infelizes.
Esforça-se muito. Contudo, eventualmente um acidente acontece.
Entramos na investigação.
Imediatamente após o acidente, os “participantes”
dividem-se em três grupos distintos, com interesses e visões
diferentes: a instituição ou empresa, o sistema
de segurança de vôo e as vítimas. No meio
desse triângulo, “as causas”. Cada grupo as
vê de um ponto de vista diferente, com interpretações
às vezes conflitantes.
Conhecido o delicado equilíbrio do sistema de segurança
de vôo, é evidente a necessidade de muito cuidado
técnico e diplomático ao se tratar da investigação
de um acidente. Não se pode esquecer e deve-se respeitar
o interesse de cada parte, porém deve-se também
ser lembrado que o acidente investigado não encerra as
operações. Haverá novos vôos, novas
possibilidades de acidentes, muitas possíveis vítimas
a serem salvas. A prevenção forte é a chave
disso. Esquecer dela durante a investigação de um
acidente é condenar muita gente ao mesmo destino trágico.
Isso, com certeza não é bom para nenhum lado. Certamente
ninguém quer que um acidente aconteça, e todas as
partes compartilham a dor das vítimas. Porém, uma
vez que o mesmo tenha ocorrido, alguns pontos de interpretação
conflitantes surgem a partir da “construção”
do “triângulo das partes”.
A instituição ou empresa proprietária da
aeronave, sendo responsável legal pela segurança
dos ocupantes durante a sua operação, e tendo que
continuar com as suas atividades aéreas, vê o acidente
sob os aspectos das perdas materiais e da necessidade de manutenção
da sua imagem pública. Isso implica em responder de modo
correto às vítimas e colaborar completamente com
o sistema de segurança de vôo para evitar que o evento
se repita. Isso é também parte importante de seu
interesse. Afinal, cada acidente representa, em última
instância, aumento de gastos e redução de
lucros. Evitá-los é sempre o melhor caminho. Portanto,
a investigação das causas, do ponto de vista da
instituição ou empresa, é uma maneira de
se descobrir o que aconteceu de errado e, assim descobrir o que
fazer para tornar as operações mais seguras e eficientes.
Descobrir “culpados” e puní-los pode até
ter interesses imediatos de aliviar cargas legais sobre a empresa
e, de certa forma, ajudar no trato do primeiro impacto de imagem
junto ao público, especialmente aqueles ligados às
vítimas, ainda abalados com as perdas de entes queridos.
Contudo, certamente apontar “culpados” não
tem nenhum efeito favorável para o sistema de segurança
de vôo. Aliás, é sempre necessário
que a investigação, ou inquérito policial,
com finalidade legal de buscar “culpados” seja completamente
separada e independente da investigação feita pelo
sistema de segurança de vôo. É necessário
que o sistema judiciário compreenda muito bem o delicado
equilíbrio baseado em confiança mútua que
existe na área de segurança. A punição
de qualquer tripulante ou operador baseado em uma investigação
técnica de segurança pode destruir rapidamente essa
confiança tão díficil de se conseguir em
anos de trabalho. Resolve o “problema” de se achar
“culpados” para um acidente, e mascara causas de muitos
outros, possivelmente até maiores, no futuro.
A parte das vítimas é frágil. A perda de
pessoas queridas faz com que seus representantes tornem-se fragilizados
e vulneráveis. É necessário protegê-los
do assédio sensacionalista e sem coração
das manchetes vermelhas, assim como dos aproveitadores que “circulam”
sobre suas cabeças. No relacionamento com as outras partes,
é dever do estado e da empresa tratá-los com o respeito
necessário, e dever de todos o entendimento da dor e dos
transtornos que a perda de um pessoa causa na estrutura emocional,
organizacional e financeira de uma família. Para as vítimas,
a investigação tem, inicialmente, um caráter
forte de “busca de culpados”. Depois, passado o grande
impacto inicial da perda, o pensamento se volta em evitar que,
no futuro, outras pessoas também tenham que passar por
todas essa dor e dificuldades. O amor e a solidariedade do ser
humano fala mais alto dentro de seus corações e
os objetivos do sistema de segurança de vôo, em evitar
outros acidentes semelhantes, passam a fazer sentido, alinham-se
com os seus.
Para o sistema de segurança de vôo, a empresa e as
vítimas são partes que devem ser satisfeitas em
seus interesses comuns: descobrir as causas e evitar novos acidentes.
Investigar acidentes nunca é uma tarefa fácil, em
todos os sentidos da expressão. Mas é uma função
extremamente importante para termos operações cada
vez mais seguras.
Prevenir acidentes: todos nós somos responsáveis
por essa parte. Seja como for. Qualquer contribuição
é importante. Seja apoiando o sistema, seja no consolo
e informação das partes, seja na conscientização
de todos com respeito aos objetivos de uma investigação,
seja lá como for. Você pode fazer alguma coisa para
ajudar!
Afinal, “o mais importante é, sempre, a segurança!”
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